O que Lula defendia 10 anos atrás?

“Eu duvido que neste país tenha alguém mais preparado para conhecer o sentimento desse povo do que eu.”

Luísa Motta
7 min readOct 20, 2023

Uma síntese da participação do atual Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no programa Roda Viva, no ano de 2002, quando este era pré-candidato à presidência do Brasil. O que o político aspirava para o país dez anos atrás? Este texto reúne os trechos mais interessantes do debate e mostra quem era Lula na campanha que o levou para seu primeiro mandato.

Em uma série especial que entrevistou os principais candidatos à presidência da república, o pernambucano, na época com 56 anos, fundador do Partido dos Trabalhadores é questionado pelos nomes: Bob Fernandes; Sandro Valleo; Eliane Cantanhêde; José Paulo Kupfer; Ricardo Noblat; Rodolfo Fernandes e Carlos Novais.

Lula durante gravação do Roda Viva, em 2002. (Foto: Evelson de Freitas/Folhapress)

O eleitor, em geral, exige pelo menos um de dois pré-requisitos para escolher o presidente da república: experiência administrativa e formação acadêmica. Não ter formação faz parte da sua trajetória e o Brasil aprendeu a valorizar isso, entretanto, fica a dúvida: por que a recusa de percorrer um caminho por outros cargos e já lançar-se à presidência?

Eu poderia ter sido prefeito em uma cidade importante ou governador do estado, entretanto, estou convencido que as mudanças necessárias se darão no dia em que o PT chegar à presidência da república. Quando o país tiver um presidente que tenha a competência de reunir seus ministros com a prioridade de resolver os problemas do povo brasileiro, o país vai mudar. A experiência administrativa é muito importante em outras profissões, mas um dirigente político precisa ter outros critérios, a função dele é pensar no conjunto da sociedade. Não sei se é dom de Deus ou a gente aprende na vida, mas é necessário ter sensibilidade para com os problemas que vive seu povo e saber definir as prioridades. Além de tudo, minha experiência política é outra; não é fácil criar um partido como o PT. Desde noventa e três me é mostrado que para governar este país é necessário conhecer a cara da tua gente. O Brasil não é a Avenida Paulista ou a Avenida Atlântica, não é um centro empresarial de São Paulo. São milhões de pessoas que vivem no anonimato passando fome. Eu acho importante um presidente da república viajar o mundo, mas me é claro a falta de viajar nosso Brasil. É necessário enxergar o semiárido nordestino brasileiro, onde tem gente passando fome. Falta a combinação de uma ação política externa com a interna. Eu duvido que neste país tenha alguém mais preparado para conhecer o sentimento desse povo do que eu. E é com esse conhecimento que eu vou fazer com que esse povo conquiste sua cidadania. O povo quer comer e trabalhar, o presidente não pode se esconder atrás de uma estatística fria e não ver a cara das pessoas. O Brasil é um país com um potencial fantástico!

O PT ajudou a demarcar a política brasileira, representando a esquerda. É de conhecimento geral que tanto a direita quanto a esquerda política procuram o centro. Entretanto, nesta eleição, o PT tem ido contra este movimento, ao buscar o apoio da direita. Não há o risco do partido estar descaracterizando o lugar de onde fala e se define?

A história da esquerda neste país mostra que, quando ela cometeu equívocos de aliar-se à direita, sempre foi coadjuvante. Pela primeira vez você está tendo um exemplo de um partido de esquerda que propõe uma aliança de forma hegemônica. O PT está à frente desta organização, nós temos clareza do que representa cada partido político, não é o caso onde, por exemplo, o cidadão ganha a eleição com a esquerda e governa com a direita. Ainda sonho com o momento e que faremos alianças com o PSB, PPS, PDT… Queremos trazer essas pessoas para junto de nós, elas virão através de um programa, e este não abrirá mão dos princípios que fizeram do PT o maior partido de esquerda da América Latina.

Fica claro todas as perdas do PT quando em negociações com a direita, o que gera, até mesmo, brigas internas; o que o partido lucra com estas alianças?

Isto não é um sofrimento para mim, nós do PT não temos medo de fazer alianças. O PT tem dificuldade de alcançar certas áreas e isso tornar-se um aliado. Eu não estou preocupado com a Igreja Universal, por exemplo, mas sim com o fiel que está dentro dela, quero conquistar o voto dele. Também não consigo confundir minhas relações de amizade com as minhas divergências políticas.

Como é possível equilibrar as alianças com o centro, esquerda e direita?

Um ponto importante do PT é que somos uma eterna negociação, é o exercício da democracia em um país que ficou anos sem exercê-la. É muito importante que o PT se abra para o centro, já que sem isso, este não fica neutro, mas vai para a direita. Eu vou carregar o sonho desta aliança política até não dar mais. Nosso partido está fazendo isso pois tem convicção que pode ganhar as eleições e já se prepara não só para isso, mas também para governar, executando o programa de transformação que nós queremos fazer para o Brasil.

Além de negociar com o centro e a direita, não é necessário se afastar da esquerda radical?

O fato de o PT ter criticado e criticar ações da esquerda radical que não concordamos, não implica que o partido não vê a questão da reforma agrária como algo importante a ser feito no Brasil, existem diversos movimentos que defendem a reforma e nós continuaremos a defendê-la. O Brasil tem muitas terras ociosas e improdutivas e é necessário uma negociação, seria um bem para o país. Farei uma reforma agrária tranquila, pacífica, sem precisar de uma morte no campo ou ocupação, só é preciso muita disposição política.

Para fazer reforma agrária não precisa fazer nenhum milagre, é preciso apenas cumprir a constituição

A reforma agrária, para você, é só uma questão de disposição política ou de acesso a verbas e orçamento?

É verdade que pode existir uma certa dificuldade de dinheiro, mas somando a questão monetária com um pouco de má vontade política, há um problema. Para fazer reforma agrária não precisa fazer nenhum milagre, é preciso apenas cumprir a constituição e não inventar medidas provisórias para dificultá-la. Com vontade política, ação combinada com os governos do Estado e a discussão no congresso nacional da disposição de mais recursos, a reforma agrária é uma possibilidade. Quando você transforma uma luta social em uma luta eminentemente política, não acontece nada. O Brasil precisa de uma boa experiência de reforma agrária, no mundo todo deu certo. Ao incentivar a agricultura familiar, o saldo é positivo, as pessoas viveriam mais tranquilas, e o êxodo rural cairia. Eu dou graças a Deus que ainda tenha 25% da população morando no campo, se não as grandes cidades ficariam insuportáveis. É preciso manter esta gente trabalhando no campo para que o Brasil seja mais feliz.

É preciso distribuir para poder crescer

Como distribuir renda neste país diante das regras de mercado e da capacidade de tributação da população já bastante significativa? Levando em consideração que mesmo que a economia cresça, isto pode ocorrer de maneira desigual.

Cabe ao governo organizar uma boa política de distribuição de renda. Com política de renda mínima, de bolsa escola, é possível fazer com que a população viva dignamente, isso é distribuir renda. Uma reforma agrária e incentivo à política agrícola geram empregos e distribuem renda. A substituição das importações por exportações e a produção nacional de parte do que é consumido gera renda e emprego. É preciso distribuir para poder crescer, e não ao contrário.

Você enfrentou três eleições históricas do ponto de vista dos meios de comunicação eletrônicos. Existe esperança ou até mesmo ilusão de que os candidatos serão tratados de forma igualitária nesta eleição e como reagirá caso isto não aconteça? Chegaria a extremos como o de José Sarney, que contratou observadores internacionais?

Sou contra observadores estrangeiros, não vejo sentido. Seria importante que as universidades brasileiras que tem curso de jornalismo colocassem como currículo escolar para o segundo semestre o acompanhamento do processo eleitoral para gerar interesse. Para moralizar as eleições brasileiras é necessário um fundo público eleitoral para que não haja a utilização dos meios de comunicação em função do que eles podem gerar para estes candidatos monetariamente. Vamos brigar para que todos os candidatos tenham direitos iguais nos meios de comunicação.

Sou um amante da democracia e tenho dedicado grande parte da minha vida lutando por ela

Com a justificativa da busca pela modernização do país, tem se falado em independência do Banco Central e restrição ou fim de medidas provisórias. Quais são seus pensamentos sobre tais tópicos?

Sou favorável à diminuição e restrição das medidas provisórias. Fui constituinte, quando aprovamos, copiamos o modelo Italiano e foi pensado para ser utilizado em momentos de excepcionalidade, partindo do pressuposto que com a conquista da democracia, a negociação iria prevalecer. Lamentavelmente, o presidente Fernando Henrique Cardoso fez em sete anos, mais medidas provisórias, editou e reeditou-as mais que o regime militar fez de decreto-lei em 23 anos. Sobre a questão do banco central, não entendo a intenção em discutir isto no final do mandato. Sou um amante da democracia e tenho dedicado grande parte da minha vida lutando por ela, gostaria que o presidente Fernando Henrique Cardoso se atentasse para uma coisa: o que ele não fez de mudanças, que permita que os que entrarão façam.

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Luísa Motta
Luísa Motta

Written by Luísa Motta

Sou graduanda em Jornalismo na Universidade Estadual Paulista, UNESP. Este site reúne um pouco dos meus trabalhos e textos!

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